Elegia, esse tipo de poema tem um tom melancólico, que busca transmitir a tristeza de uma forma única. Basicamente, ela era muito comum no uso para lamentos de mortes e em músicas fúnebres. Mas também podia ser usada em situações de extremo pesar e tristeza. Como o próprio nome sugere, a origem desde tipo de poema é grega, mas ele foi adotado também pelos romanos. Inclusive, os epitáfios são considerados um tipo de elegia, já que pequenos textos são feitos em memória ao falecido. Essas características fazem com que as elegias estejam presentes em nossas vidas constantemente. Inclusive, a música é um meio de expressar elegias. E a elegia musical não somente passa uma ideia do sentimento, mas sim, conseguir transmiti-lo por meio da composição e do arranjo instrumental.
É cientificamente comprovado que as melodias conseguem tocar pontos em nossas mentes que nenhuma palavra jamais alcançaria. Por isso, a música consegue ser uma ferramenta perfeita para se transmitir uma mensagem tão sentimental. E sendo assim, precisamos reconhecer que esses tempos que passaram e ainda estamos passando, merecem uma elegia digna de transmitir toda a melancolia da perda e da tristeza. É por isso que fui surpreendido de uma forma positiva pelo lançamento dos garotos americanos do Shadow of Intent. O quarteto formado em 2013 possui 3 fulls em sua discografia, e esse ano disponibilizou seu quarto e mais novo deles, o disco “Elegy”. Lançado dia 14 de janeiro, esse disco possui uma atmosfera melancólica e extremamente bem produzida. Mas quem são esses garotos?
Ben Duerr (vocais) e Chris Wiseman (guitarras e samples) são de Rhode Island e amantes da mais pura brutalidade sonora. Mas também amantes da série de jogos ‘Halo’, e foi desse amor que surgiu a banda e o primeiro disco, “Primordial” em 2016. Eles executavam um som menos trabalhado, mas extremo, com quebras de tempo de invejar o mais habilidoso de todos os músicos. As guitarras de Chris eram rápidas e potentes, a bateria de Matt Kohanowski (baterista da época) parecia um tanque de guerra e os vocais versáteis e extremamente brutais de Ben provaram a todos que a banda iria amadurecer e compor algo do nível que eles mereciam. “Primordial” está longe de se parecer um disco de estreia, onde geralmente as bandas parecem estar se acostumando com a ideia de ‘tocarem em público’. Pelo contrário, o disco possui algo que até mesmo muitas bandas veteranas não tem, aquele entrosamento entre os membros. Então, em 2017 sai o 2° disco, o lindo “Reclaimer”, com 12 composições que mostram a melhor forma da banda, até então. Em agosto de 2019, o mundo conhece “Melancolhy”, um álbum que buscou sintetizar a brutalidade exacerbada com o sentimento de melancolia. Mas nenhuma dessas obras conseguiram atingir o ápice que foi apresentado por “Elegy”.
Um verdadeiro ode a melancolia e brutalidade, o disco consegue unir a cacofonia da guerra, com a deslumbrante síntese dos sentimentos. Literalmente apresentando ao ouvinte uma viagem por nuances diferentes e complexas, sem se tornar inaudível e maçante. “Farewell” apresenta o que se esperar do novo full lenght dos americanos com uma introdução progressiva e orquestrada de quase um minuto, que deságua em bases brutais e violentas, acompanhadas por blast beats destruidores. Os vocais absurdos de Ben Duerr são incríveis e conseguem flutuar entre guturais densos e sujos até excelentes vocais rasgados e sempre sendo extremamente audíveis. Outra característica de dar orgulho dessa banda tão nova e tão boa, são as pequenas nuances que Chris consegue transmitir em seus solos combinados as orquestrações tão bem construídas. Agora se você preferir uma composição mais sinfônica e mais progressiva, “Saurian King” é a pedida perfeita. Caminhando desde uma faixa mais direta, a música evolui para um ápice de velocidade e técnica assustadora. Resgatando a essência de sua antiga fórmula, “The Coming Fire” relembra em “Elegy” o caminho pelo qual a sonoridade da banda passou, seguindo desde um som mais ‘cru’ e reto, cercado de bases rápidas e blast beats insanos. O solo melancólico dessa composição conseguiu unir o antigo ao novo, criando um mantra abrasador para nossos corações.
Enquanto isso, “Of Fury” é a composição mais “leve” , possuindo uma atmosfera não tão obscura e densa, apresentando um som mais trabalhado, cercado de teclados e pequenas sinapses que o levaram a banguear sem mesmo conhecer o andamento. Sem mencionar o trabalho visual do clipe, simplesmente excepcional. “Intensified Genocide” foi a primeira composição do disco a ganhar um passaporte como single, e a banda acertou em escolher uma música tão completa como essa para estrear.
A mescla entre pontes pesadas e extremas com um ‘chorus’ mais sentimental criou uma ambientação perfeita para chamar atenção, me conquistando na primeira audição. Enquanto isso, “Life of Exile” se trata de algo mais ‘simples’, se é que podemos chamar assim, os coros melancólicos combinam com a atmosfera fúnebre, uma faixa memorável. Mas foi na música “Where Millions Come to Die”, ou melhor no drum playthrough, que o baterista Bryce Butler conquistou a minha atenção. A faixa em si é uma composição assustadoramente contagiante e brutal. Os riffs se dividem em bases vorazes e bases cortantes. O vocal dividido por Ben e o convidado Phil Bozeman (Whitechapel) é ensurdecedor. Além do trabalho exímio do baixo de Andrew Monias, que não deixa a bateria de Bryce ficar sem um fundo de suporte. As pontes da composição são dignas de dar inveja as bandas mais teatrais como Behemoth, Carach Angren ou Septic Flesh. Mas voltando a falar de Bryce, é muito legal o ver tocar, pois ele é o primeiro baterista de Death Metal que vejo sorrindo enquanto toca partes extremamente difíceis e rápidas. O sorriso em seu rosto é uma prova de que o trabalho em “Elegy” é no mínimo prazeroso.
O segundo single lançado é pra mim a melhor composição da obra, “From Ruin… We Rise”. Aqui a marcha fúnebre da elegia atinge um ápice pungente e soturno. Denso e doloroso. Doce e ao mesmo tempo perturbador. Ben Duerr transforma sua voz em uma arma afiada, e podemos sentir cada nota vocal produzida por ele como que atravessando nossa pele e ferindo nosso íntimo. O trabalho de orquestração de maestro Ferrini (Fleshgod Apocalypse) permite com que o ouvinte sinta a dor de cada uma das palavras proferidas aqui. Além da composição nem um pouco linear, e cheia de pequenas nuances que realmente tocam a psique do ouvinte. Simplesmente uma música completa, que me conquistou e cativou de uma forma assustadora. E para você que estava sentindo falta de algo mais convencional e tradicional, “Blood in The Sands of Time” não só apresenta uma banda que sabe fazer o mais clássico e simples, como também uma banda que escolhe muito bem que convida para participar de seus discos. O escolhido para essa faixa não é nada mais que o lendário vocalista Chuck Billy do Testament! Fazendo aparições pontuais na composição, sua voz contribui para manter o peso sem perder a qualidade em nenhum momento. As pontes aqui deixam de ser mais retas e se tornam bases mais cavalgadas, lembrando um pouco algumas canções do próprio Testament. Na sequência ouvimos a instrumental “Reconquest”. Digamos que ela se assemelha a algo como ‘se Myrath tocasse metal extremo’, o que a faz ser uma faixa excelente.
Para finalizar, a banda decidiu dividir em 3 faixas a épica “Elegy”. O ato “I: Adapt” é lindo, apresentando uma composição mais clean, permeando os instrumentos suaves, seguidos da voz de Ben sugerindo gritos abafados de pessoas aceitando sua própria morte, e entoando a seguinte elegia:
“Cave suas sepulturas
Enterre os ossos
Espere por DeusQue destino espera
Aqueles que matam?
Tiranos assassinos
Apenas busque a supremacia”
Em sequência, o próximo ato “II: Devise” ouvimos o ódio dos próprios humanos com tamanha idiotice da nossa própria raça querendo brincar de Deuses. Os que antes aceitavam suas mortes, agora unem suas vozes e entoam enraivecidos a não aceitação de tanta injustiça. Nesse ato, os instrumentos se tornam um verdadeiro ode a raiva e expressão a raiva da raça subjugada sob aqueles que os dominam.
“Então, nós cantamos para dormir
Quando os fortes ultrapassam os fracos
As cidades queimam, as pontes se dobram
Agora, nós colocamos nossas cabeças para descansar”
Por fim, o ato final “III: Overcome” é a verdadeira aceitação que a raça humana viveu a história toda sobre a sombra de si mesma. Ou seja, o único objetivo é superar o próximo e deixar o legado para que a próxima geração celebre seus atos. Aqui o instrumental segue o mesmo princípio da anterior, mas, ele vai diminuindo o ritmo até chegar ao final, como que simulando uma ‘decadência’. Nessas 3 partes, a banda busca apresentar que as conquistas históricas de cada povo nada são do que pontos de vistas diferentes da mesma história. O que pra um é algo de regozijo, para o outro é motivo de aceitação de sua morte.
“Vitorioso, agora, o vencedor canta
E reescreve os fatos frios da história
Para apresentar sua grandeza à sua prole
Este processo circula continuamente”
A elegia apresentada pelos americanos do Shadow of Intent é excepcional, e digna de ser lembrada como um lançamento muito acima da média. Claramente, este canto fúnebre não assina o final para a banda, e sim marca mais um ponto de sua história que tem tudo para durar muitos e muitos anos.
Nota: 9,2
Integrantes:
- Ben Duerr (vocal)
- Chris Wiseman (guitarra e programação)
- Bryce Butler (bateria e sorrisos)
- Andrew Monias (baixo)
Convidados:
- Phil Bozeman (Whitechapel – vocal faixa 7)
- Chuck Billy (Testament – vocal faixa 9)
- Francesco Ferrini (Fleshgod Apocalypse – teclados)
Faixas:
- Farewell
- Saurian King
- The Coming Fire
- Of Fury
- Intensified Genocide
- Life of Exile
- Where Millions Have Come to Die
- From Ruin… We Rise
- Blood in the Sands of Time
- Reconquest
- Elegy I: Adapt
- Elegy II: Devise
- Elegy III: Overcome
Redigido por: Yurian ‘Dollynho’ Paiva