Muito antes de escrever a obra literária que se tornaria um grande marco no cinema nacional, Marcelo Rubens Paiva fez parte de um dos maiores eventos Punk registrados na história do Brasil

Nos últimos meses, não foi difícil encontrar nas redes sociais alguma menção à família Paiva — e mesmo para quem não está habituado a navegar pela internet, em algum momento deve ter ouvido alguém próximo mencionar esse nome.
E há um motivo muito especial para isso: “Ainda Estou Aqui”, lançando em novembro de 2024.

O longa-metragem caiu nas graças do público brasileiro e foi um dos tópicos mais comentados na internet até os dias atuais — especialmente pelo mérito das três indicações ao Oscar de Melhor Filme, Melhor Atriz e Melhor Filme Internacional. E, claro, a atuação impecável do elenco dirigido por Walter Salles, junto com o carisma de Fernanda Torres e Selton Mello durante a campanha de divulgação do filme, fizeram de “Ainda Estou Aqui” um clássico instantâneo.
No entanto, todo esse alvoroço e reconhecimento não aconteceria se Marcelo Rubens Paiva não relatasse ao mundo a corajosa história de sua família.
Marcelo Rubens Paiva Antes do “Começo do Fim do Mundo”

A vida do escritor foi marcada por grandes acontecimentos, a começar pelo fato que, ainda adolescente, viu o pai sair acompanhado por agentes do governo militar para nunca mais voltar. A família não perdeu a esperança de reencontrá-lo, mesmo que, no fundo, desconfiassem do pior: a possível morte do amado e estimado Rubens Paiva.
E a tragédia certamente ocorreu após sua prisão em 1971. Mais de 20 anos depois, sua morte foi confirmada pelo atestado de óbito emitido pela Justiça. O engenheiro, que na época tinha 41 anos, teve sua vida abreviada pela mais extrema violência, tortura e barbárie.
Além do sumiço do pai, outra reviravolta aconteceria no verão de 1979, colocando à prova o destino de Marcelo Rubens Paiva. Na ocasião, o jovem estudante de Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas resolveu se aventurar junto aos colegas de quarto em um lago de trechos rasos. Um salto mal calculado, entre momentos de euforia e uma pose à lá Tio Patinhas, logo resultou na fratura da quinta vértebra da coluna cervical. Marcelo ficou temporariamente tetraplégico.
Após um longo e doloroso tratamento — que possibilitou a volta parcial dos movimentos —, ele resolveu, aos 21 anos, escrever um livro autobiográfico, intitulado “Feliz Ano Velho”. O romance, publicado em 1982, tornou-se um best-seller. Ele trouxe consigo não apenas o processo de recuperação lenta do autor, mas também sua bem-sucedida estreia como escritor nacional.
“O Fim do Mundo”, enfim
O romancista teve uma aproximação muito forte com a música, especialmente, ao se integrar à cena cultural de São Paulo em 1980. Tal cena refletia bem o espírito jovem e rebelde contra a repressão do Estado, marcada pelo AI-5.
Foi justamente no Punk que Marcelo Rubens Paiva encontrou outras maneiras de manifestar, protestar e confrontar a fase final do regime militar. Durante as idas e vindas de muitas reuniões, ele também conheceria, no reduto Punk, um nome de presença e destaque: Clemente Tadeu Nascimento — mais conhecido como Clemente, da banda Inocentes.

Direto da Vila Carolina, Clemente se tornou uma figura ativa no movimento underground paulistano. Além de possuir grande entusiasmo por política, artes e música, o jovem negro e periférico carregava consigo uma postura inegavelmente crítica e contestadora contra a repressão e a censura imposta pela ditadura. Obviamente, os interesses mútuos entre músico e escritor facilitaram o encontro e a colaboração de ideias no contexto da resistência cultural dos anos 80.
Essas interações foram fundamentais para fortalecer os laços entre o meio literário e musical.
“O Começo do Fim do Mundo”
A força e a crueza do Punk brasileiro estiveram presentes nos dias 27 e 28 de novembro de 1982, no SESC-FÁBRICA da Pompeia, em São Paulo. Organizado pelo escritor e dramaturgo Antonio Bivar e o músico Antonio Carlos Callegari, o festival “O Começo do Fim do Mundo” tinha alguns objetivos. Não só dar voz a garotos periféricos, marginalizados e oprimidos pelo regime, como uma tentativa de selar união entre Punks da capital e ABC paulista.
E, de fato, a união se oficializava — ainda que houvesse momentos de tensão e rivalidade pairando no ar. O festival seguia seu percurso natural rumo ao hall da história.
Com a junção dos membros, a ideia de ser o “Punk mais Punk” foi reivindicada, e as disputas ideológicas foram deixadas de lado. Surgiu uma força maior em prol do movimento, pois o acordo de paz beneficiava tanto os Punks presentes quanto alguns transeuntes curiosos que resolviam checar o farfalhar enérgico e jovem.

“O Começo do Fim do Mundo” teve seu ritmo embalado por 20 bandas regionais. Além das músicas e performances marcadas pela ferocidade, os discursos críticos também desempenharam um papel importante nas apresentações. Eles contribuíram ainda mais para a revolta violentamente expurgada em cada canção. O evento contou com artistas dos mais variados nichos, que expuseram materiais como fanzines, discos, filmes e imagens.
E o mundo quase acabou há 42 anos no maior festival punk do Brasil
40 anos depois, o festival segue na memória dos que dedicaram uma parcela de suas vidas à luta contra repressão e violência do Estado. Obviamente, o movimento foi além disso. Muito além do que aqueles garotos poderiam imaginar. A potência e a ira de suas vozes ecoam aos ouvidos de muita gente nos dias de hoje.
Mesmo com a intervenção truculenta de policiais no segundo dia do evento, “O Começo do Fim do Mundo” sobrevive — e ainda sobreviverá — como uma das maiores forças que um movimento musical brasileiro pôde proporcionar. Mídias como LPs, fitas VHS, fotografias e documentários trazem um pequeno vislumbre do que foi a experimentação artística e o intercâmbio cultural, marcados pela abordagem inovadora e ousada dos organizadores e participantes.
Marcelo Rubens Paiva e Clemente Tadeu Nascimento se encontrariam, anos mais tarde, para escrever “Meninos em Fúria”. O livro mescla histórias pessoais com acontecimentos marcantes no início do movimento Punk em São Paulo. Assim como o festival, “Meninos em Fúria” reflete bem a impetuosidade, rebeldia e coragem daqueles que, em meio às mazelas da pobreza e hostilidade, desafiavam um sistema opressor e sanguinário.
